Uma reflexão sobre 132 anos

Quem será que colheu? Quem será que plantou? Porque elaborou deste jeito, porque escolheu esta uva? Deviam saber que a Terrantez era difícil: sua acidez nem sempre agrada. Nem sempre produz. Nem sempre amadurece. Sabiam que era Terrantez? Ou seria apenas um vinhedo de herança? A tal da Terrantez... Aquela complicada... que quando nasciam cachos, eram poucos. Do tal do vinho complexo, durão, tão bruto quanto o solo da ilha. É sua personalidade, goste quem quiser, é assim. Só que é isto que a fez chegar tão longe. Deve ter ficado em casco de madeira, deve ter ido ao sol como um Madeira bem "primitivo". Deve ter trocado de mãos, de donos. Por algum motivo aguentou guerra, não foi embora da ilha, nem pilhada, nem despejada. Não houve tormenta que a destruísse. Por cem anos deixou evaporar a parcela dos anjos, então foi para a garrafa. Deve ter ficado deitada, pois parte da rolha se tornou parte do vinho. Só sei que chegou aqui. Ainda difícil, ainda ácido. 132 anos não bastaram para conter sua personalidade, um pouco cansada, mas ainda guerreira. Quando chegou, encheu a sala. O perfume ainda está aqui, ainda está nas minhas mãos que o serviram, mesmo 12h, 15h depois. É a concentração, é o não sei o quê que tem num vinho destes. Só sei que um ciclo se fecha. É o perfume que coroa a mão: a uva foi plantada, até já foi extinta, a garrafa já foi aberta. A mão que plantou, que colheu, elaborou; guardou, guardou e guardou. A mão que abriu e a que serviu. Quantas gerações? Qual o tamanho do homem, ser humano, perante a continuidade da vida?  Coisas que não se explicam.

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(Fernando Pessoa)